Apresentador do Correio Esporte, da TV Correio; autor do livro "Feitos Paralímpicos"; e Mestre em Jornalismo pela UFPB.
Campina Grande, 1965. Jailton estava com 12 anos de idade e passava em frente de uma casa, diariamente, para ir jogar futebol com os amigos. Existiam diversos campos de pelada naquele período espalhados na cidade. Uma vez, ele parou para observar uma garota que lia para Seu Miguel, um senhor de 80 anos e cego desde os primeiros anos de vida, além de um apaixonado pela literatura de cordel, que faz parte da cultura nordestina. Jailton ficou encantado ao ver as reações de Seu Miguel, que ria alto com as estórias contadas para ele, por essa garota. O encontro passou a ser praticamente uma rotina na vida do adolescente.
Até que, um dia, quando caminhava para jogar bola, Jailton observou Seu Miguel sentado, cabisbaixo e bem sério, em frente de casa, sem a voz e os olhos que levavam os textos rimados, bem-humorados, sarcásticos, que falavam de diversos temas, incluindo política e história. A garota, que vamos chamá-la com o nome fictício de Carminha, não estava mais lá. Antes de cumprimentar Seu Miguel, Jailton olhou rapidamente pela casa e não a viu.
– Boa tarde, Seu Miguel!
– Boa tarde, Jailton!
– Cadê, Carminha?
– Foi embora para João Pessoa!
– Ah! Tá certo! Vou seguir para jogar bola agora!
– Divirta-se, garoto!
No caminho para o campo de futebol, Jailton ficou reflexivo sobre quem poderia ler os livros de cordéis para Seu Miguel. Essa dúvida começou permear pela cabeça dele. “Será que algum familiar faria isso? Deve fazer. Mas eu poderia ler também! Por que não?”
– Olha a bola, Jailton – reclamou o atacante que não recebeu o passe correto –
Parece que está no mundo da lua! Acorda!
– Foi mal – respondeu ainda pensativo.
Alguns dias depois, após fazer as lições de casa, Jailton passou na feira e comprou um folheto que contava a história de Lampião e Maria Bonita.
– Seu Miguel! Seu Miguel! – gritou o garoto correndo em direção àquele senhor que estava sentado em uma cadeira, ouvindo o movimento da rua.
– Trouxe uma história para a gente!
– Não vai jogar bola, garoto?
– Hoje não. Vou ler para o Senhor! Lampião e Maria Bonita!
– Eita! Essa deve ser boa! – respondeu Seu Miguel dando risada e feliz com a
boa notícia que Jailton trouxe.
Aquele dia, aquele sentimento, aquela empatia, aquele carinho, aquele respeito, transformou a vida de Jailton. Ele passou a ser o ledor de Seu Miguel. “As gargalhadas dele, os comentários, a alegria ao ouvir as histórias contadas por mim, não saem da minha memória”, disse Jailton em 2024, com 71 anos de idade e 47 deles dedicados ao paradesporto.
Ao ouvir essa história, eu me perguntei nessa hora: “Quantas pessoas, hoje, dedicariam um pouco do seu tempo a um cego ou a uma pessoa com deficiência. Ou a qualquer pessoa que gostaria de apenas conversar?”
Jailton dedicou-se.
Ele permaneceu com Seu Miguel durante um ano e não continuou mais porque a família retornou a João Pessoa. E, graças a esse período, o garoto de 12 anos, que lia apenas gibis, apaixonou-se pela leitura até hoje.
Nunca mais Jailton encontrou Seu Miguel.
Acredito que essa empatia e essa dedicação pelas pessoas com deficiência podem ter sido despertadas com Seu Miguel. Falar de paradesporto na Paraíba, é chegar sempre no nome de Jailton Miranda.
Em João Pessoa, começou a treinar atletismo, destacando-se em provas de 400m rasos, conquistando títulos paraibanos, regionais, além de representar o estado em diversas competições nacionais. Concluiu o curso de Educação Física na UFPB.
Ainda estudante, estagiou no Instituto dos Cegos em 1977 e depois foram anos se dedicando ao paradesporto paraibano, trazendo para o estado, como técnico, a primeira medalha coletiva no futebol de cegos em 1982. Bronze nas Olimpíadas Nacionais das APAES (Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais) e Instituições Especializadas que foram realizadas em Belém-PA. A equipe era composta por: Lourenço, Cícero, Pereira, Teixeira (in memoriam), Jesuíno, Lucas e Antônio Amador (Toinho).
Além disso, ele treinou como atleta-guia com Fernando Alves, participando de provas de corrida de rua na distância de 5km. Corriam lado a lado. Um toque no braço, e Fernando sabia que precisava mudar de direção. Jailton descrevia, durante a prova,
os locais por onde passavam, o tempo, e tudo que acontecia ao redor.
– Tá tudo bem, Fernando?
– Jóia, jóia! – respondia o atleta
– Quer água, Fernando?
– Não, não! Segue! – replicava o atleta dedicado que se tornou campeão brasileiro nos
100m rasos em 1999, treinado pelo Professor Pedro Almeida, o Pedrinho.
Um detalhe importante: Jailton foi quem apresentou Pedrinho ao paradesporto na década de 90, e este se dedica até hoje no atletismo, treinando atletas campeões paralímpicos e mundiais como Petrúcio Ferreira e Cícero Nobre.
A batalha de Jailton é maior e árdua porque a luta dele não foi só como técnico e atleta. Foi além. Enfrentou grandes dificuldades nos bastidores também. Conseguiu instituir o esporte na Fundação Centro Integrado de Apoio à Pessoa com Deficiência
(Funad-PB). A Instituição, à época, precisou mudar o estatuto para receber modalidades como basquete em cadeiras de rodas, atletismo, natação, halterofilismo, entre outras. Sua batalha deu certo e hoje, a Funad-PB participa de competições levando o próprio nome.
Jailton filiou o basquete em cadeiras de rodas na Paraíba, em 1998, e foi o técnico da modalidade que trouxe o título de campeão nordeste, em 2015, além de criar a AAPD-PB (Associação Atlética Paradesportiva da Paraíba), em 2001.
Jailton fez, faz e é história no paradesporto paraibano. É impossível escrever sua trajetória em uma coluna. Mas ele tem a sua biografia escrita já para lançar e contar tudo em detalhes. Aliás, são três livros prontos. Os outros dois são sobre a história do Instituto dos Cegos da Paraíba e sobre o basquete em cadeiras de rodas, contando sobre a modalidade e o treinamento. Espero que essas histórias não
desapareçam e que o legado fique registrado.
Não contei nem metade do que ele realizou. E também não temos como mensurar, quantos atletas com deficiência surgiram após esses trabalhos, nem quantos se sentiram incluídos na sociedade por conta de pessoas como Jailton, que brigaram pelo paradesporto paraibano.
Há 59 anos, Jailton lia histórias para Seu Miguel ouvir. Espero que, hoje, as pessoas escutem o que ele tem a dizer nos livros que escreveu e ainda não conseguiu publicar.